quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

20 de Fevereiro

Queridos todos

Aqui vão notícias rápidas: A Marta acabou a sua quarta quimio. Peripécia inesperada: ficou sem cateter na 4ªfeira dia 13 – os tubos ficaram presos na seu triciclo de estimação… Acabou os tratamentos através de veia periférica. Na sexta colocou novo cateter … que está a funcionar. Viemos para casa e estamos à espera da descida dos valores. Hoje já fomos fazer análises e voltamos no dia 22 para ver se já precisa de alguma transfusão.

Obrigado do fundo do coração a todos que nos têm dado tanto apoio. Que privilégio ter assim quem reze por nós.

P.S. Gosto imenso que, no hospital, me chamem ‘Mãe da Marta’. A única razão porque lá estamos é ter uma criança doente e parece-me uma maneira ternurenta e inteligente de resolver o trato dos pais.

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Dear all

Here are some quick news: Marta has finished her fourth chemotherapy. Unexpected event: she lost her catheter on Wednesday 13 – the tubes got stuck in her favorite tricycle... She had to finish treatments through a peripheral vein. On Friday a new catheter was installed which seems to be working properly. We’ve come home and are now waiting for data to hit bottom. We have gone for blood tests today and will go back on the 22 to see if she needs a transfusion already.

We wish to warmly thank all who have given us support. What a privilege to have so many pray for us.

P.S. I like it very much that in the hospital I am called ‘Marta’s mother’. The only reason I am there is that I have a sick child and it seems to me a very sweet and intelligent way of bypassing the complex issue of name calling in our countries.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

7 de Fevereiro

Queridos todos

A nossa adorada Marta fez análises na segunda-feira dia 4 e confirmou-se que os valores estão a subir: hemoglobina a 10.8 (fazem transfusão abaixo de 7), 240.000 plaquetas (transfunde-se abaixo de 20.000), 800 neutrófilos... Esta aplasia (período em que os valores batem no fundo do poço) foi passada em casa! Agora, se não houver outro tipo de complicações, a Marta vai para o IPO na segunda dia 11, faz análises para confirmar que está tudo bem e começa a sua quarta quimioterapia.

Estes dias que a Marta passou em casa proporcionaram-me umas abertas a mim, Mãe da Marta - como somos tratadas no IPO. Nessas rápidas saídas, tenho encontrado pessoas que, muito atenciosas e preocupadas, me perguntam como é que eu estou. Eu respondo "Estou óptima!" Olham para mim perplexas, sem saber bem se estou a ser irónica, se estou a leste ou se simplesmente já 'me passei'! Mas a verdade é mesmo esta: estou óptima!

Estou também completamente ciente da gravidade do cancro da Marta. Sei que as leucémias mieloblásticas têm uma percentagem de cura que ronda os 30 por cento, que o facto do cancro se ter desenvolvido antes da Marta ter um ano, agrava a coisa, que os cancros têm a característica de serem imprevisíveis: agora está-se a reagir bem e daqui a meia hora está-se em perigo iminente de vida... Tendo já quatro meses de IPO, com vários internamentos e isolamentos, posso dizer que já vi muito. Já vi crianças moribundas que no dia seguinte entraram na salinha dos brinquedos pelo seu pé e já vi crianças que se diria tinham finalmente 'dado a volta' e que no dia seguinte tinham morrido. E já vi aquelas cujo estado geral se deteriora de tal maneira que vão ficando cada vez mais no seu quarto, cada vez mais ausentes até entrarem em coma cada vez mais profundo e morrerem.

Dou-me conta que mais ainda que o desenrolar do próprio cancro, há um sem fim de complicações que aparecem para alterar os prognósticos e os subsequentes tratamentos. Sei também que o processo está longe de estar concluído: quando acabar esta fase vem um ano da chamada 'manutenção' e depois vem a vigilância constante e regular: não se sabendo o que provoca este cancro não se têm pistas para antecipar uma possível recaída. E se houver recaída, tudo fica bem mais difícil e as hipóteses de cura bem mais remotas. Prognósticos aqui, só mesmo no fim do jogo!

E depois, há os tratamentos que são brutais. E brutais as consequências e os efeitos secundários dos tratamentos. E brutais todas aquelas coisas que se espera não aconteçam mas que já aconteceram noutros casos... E há as biópsias sob anestesia e ficar meio dia sem poder comer nem beber, e há as punções lombares feitas sem anestesia... E é a perspectiva de mais internamentos e de mais isolamentos e da vida posta de lado durante anos... E é o dó daqueles que sofrem sem se queixar, e daqueles que não aguentam mais, e dos pais que não são capazes de lidar com a doença, e das crianças que choram, choram... E é o ambiente que pode ser tão pesado que os próprios médicos dizem: 'há dias que nenhuma palavra é capaz de descrever o que aqui se passa'...

Para não falar no famoso transplante que a ouvir as pessoas é tão simples como tomar uma aspirina. Simples é, na medida em que o transplantado recebe a medula a transplantar através do caterer: parece uma transfusão. Mas aqui acabam as parecenças. Para preparar o doente para o transplante é preciso 'eliminar' por completo a medula do próprio, o que é feito com doses ainda mais 'letais' de quimioterapia e outros processos. E depois é preciso que o transplante agarre, que não seja rejeitado, que não rejeite o seu novo hospedeiro, que o que resta do sistema imunológico do doente não se ponha a combater desenfreadamente este invasor... E os vómitos, e os enjoos, e as feridas no sistema digestivo, e os problemas na pele, e as complicações... são proporcionais. E este isolamento sim é rigorosíssimo e não costuma durar menos de dois a três meses.

No meio disto tudo, a Marta tem tido um percurso surpreendentemente bom.

Porque a quimio tem resultado (há crianças cujos cancros não cedem nem um milímetro a doses sucessivas de quimioterapia), porque de todas as infecções que podia já ter feito - fez poucas, porque de todas as complicações - só fez a dos fungos... Porque odiava 'fazer o penso do cateter' que tem que ser mudado todas as semanas, chorava, gritava, debatia-se e ficava roxa que nem uma beringela (descolam-se os adesivos que agarram à pele e isolam de infecções primárias, limpa-se, desinfecta-se com alcóol e colocam-se novos adesivos) mas já fez dois pensos sem chorar!

No hospital de dia toda a gente sabe que de todas as crianças que por lá passaram só havia uma menina que não chorava quando fazia o penso. Agora se calhar vai passar a haver uma segunda.

E esse famoso cateter que tem funcionado sem problemas! Há crianças que com o mesmo tempo de cancro que a Marta já mudaram 4 vezes de cateter, outras que não podem pôr catéter.... E é vê-los serem picados para tirar sangue, para fazer tratamentos. E já nem tem a ver com a perícia das enfermeiras que é muita, tem a ver com a saturação e a dificuldade em gerir esta 'doença prolongada'.

A Marta é um deslumbramento e vive este desafio com uma maturidade e um sentido de humor que fazem pasmar todos: ao pé dela, a gente sente-se bem! Como não tem irmãos compatíveis e tem respondido bem aos tratamentos, os médicos decidiram não agendar para já o transplante na esperança de que a Marta seja dos raríssimos casos de mieloblásticas que se curam sem transplante. Eu acho isto uma benção do céu, não acham?

Perante tanto milagre, tanto mimo de Deus, como não viver em acção de graças?

Como não receber com toda a gratidão os paliativos que Deus nos manda, à Marta e a nós?

Como não louvar a Deus por esta avalanche de orações que amigos e desconhecidos têm feito descer sobre nós?

Nunca achámos que a vida fosse feita sobretudo ou só de coisas boas. Se agradecemos essas, como não agradecer as outras?

Se pedimos a Deus para acabar a vida nos Seus braços divinos, como achar que o nosso caminhar se pode fazer à margem daquilo que é intrinsecamente humano e que inclui dor e sofrimento?

Se sabemos que Deus gosta da Marta e de cada um de nós com um amor indizível e irrepetível, que para ela e cada um tem um projecto de amor perfeito, como não confiar, sem réstia de medo?

Se sabemos que nos entregámos à Providência misericordiosa de Deus, como não viver em absoluta paz?

Se sabemos que a fé é um dom gratuito, como não o receber com toda a humildade?

A felicidade não é a ausência de dor. A morte é a passagem para a verdadeira vida.

Deus criou-nos para sermos felizes: em que é que andamos a perder tempo?

De facto, a única coisa que devemos temer é o mau uso da nossa liberdade porque isso sim afasta-nos da felicidade.

Tudo o mais é a certeza absoluta do carinho e da ternura avassaladora de Deus por cada um de nós. Ser feliz é ter a certeza do amor de Deus por mim. É cantar, como Nossa Senhora, o meu 'Magnificat'.

Como é que eu estou? Estou óptima!

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Dear everyone

Our beloved Marta has done blood tests on Monday the 4th which confirmed that her data is strengthening: haemoglobin at 10.8 (transfusions are given under 7), 240.000 platelets (transfusions under 20.000), 800 neutrophiles... This isolation period, during which all data hits bottom, she spent home! Now, if no complications arise, Marta will go to the hospital on Monday the 11th for blood tests to check on her general well being and will start her fourth chemotherapy.

These days that Marta spent home gave me, Marta's mom -as we are known in the hospital-, the opportunity to go out. During those quick escapades, I ran into people who, very concerned and caring, asked me how I have been doing. I have answered: Great! I have seen them look at me in bewilderment, not knowing whether I am being sarcastic, whether I am in denial or have simply lost it! But this is the truth: I am doing great!

I am also acutely aware of the seriousness of Marta's cancer. I know that mieloblastic leukemias have a cure rate of about 30 percent and that Marta's cancer having developed before she was one, makes it even more problematic. I know that cancers are characteristically unpredictable: there is a good reaction now, but in half an hour's time one is in imminent danger of death... With my four months of cancer hospital I can say I have already seen a lot. I have seen dying children who the following day go to the playroom on their own two feet and I have seen children who you'd think have finally overcome the disease who are dead the next day. And I have seen those whose general state deteriorates so much that they stay in their room longer and longer, progressively more absent until they fall into an ever deeper coma and die.

I realize that more so than the development of the cancer itself, there is a great number of complications that change the prognosis and the subsequent treatments. I also know that the process is far from over: when this fase will come to an end, there will be a year's worth of the so-called 'maintenance' and later the constant and regular vigilance: not knowing what causes this cancer, there are no clues to look for to anticipate a relapse. And if there is a relapse, then everything becomes much more delicate and the chances for cure much more remote. Prognosis here... truly only at the end of the game!

And then, there are the brutal treatments. And the brutal consequences and the brutal side effects of the treatments. And brutal are all those extras that one hopes will not happen, but which have happened before in similar cases... And the biopsies done under general anesthesia which require half a day of fasting from both food and water, and the lumbar punctions done without anesthesia... And the anticipation of more hospitalizations and more isolations.... And life put on hold for years... And the heartbreak of seeing those who suffer without complaining, those who can't take it anymore, the parents who find themselves unable to cope with the disease, and the children who keep crying... And the atmosphere is sometimes so heavy that doctors themselves say: 'there are days for which there is no possible description!'

Not to mention that famous transplant which, in some people's words is as easy as taking an aspirin. Simple, yes, insofar as the transplantation occurs through the catheter: it looks like a transfusion. But that is where the similarities end. To prepare the sick for the transplant it is necessary to completely 'eliminate' their bone marrow which is done through even greater and more 'lethal' doses of chemotherapy and other processes. And then it is supposed that the transplant hold on, that it not be rejected, that it not reject its new host, that what is left of the immune system of the transplanted person not start to furiously fight the invasor... And the vomiting, and the nausea, and the sores throughout the digestive system, and the skin problems and the complications... are proportional. And yes, this isolation is an extremely rigorous one and it seldom lasts less than two to three months.

Through it all, Marta's course has been unexpectedly good.

First of all because chemotherapy has been producing the desired effects (there are children whose cancer does not yield a millimetre to successive treatments of chemo). Then, because of all the infections she could have had, she had only a few; of all the complications in store, she has yet had only the fungi... Because she hated doing the dressing of the catheter which needs to be changed weekly, she used to cry, scream, struggle and turn blue (the adhesive that prevent primary infections need to be taken off, the area has to be cleaned and disinfected with alcohol, and new adhesive put in place)... but twice already she has undergone the process without crying! At the hospital, every body knows that only one little girl among all children didn't cry while dressing the catheter: maybe now there will be a second one!

And that famous catheter which has been working hassle free! There are children whose cancer has been diagnosed at the same time as Marta and who have replaced catheters 4 times already. Others cannot have a catheter... And you see them reacting to the needles, taking blood, getting ready for treatments. And it's not that the nurses are not experts, which they are - it's just that they are fed up and that it is so difficult to handle this 'prolongued disease'.

Marta is truly amazing and lives this challenge with a maturity and a sense of humour that astonishes everyone: around her, one feels good. Since she does not have compatible siblings for the sake of a bone marrow transplant, doctors have decided not to schedule it for now in the hope that Marta is one of those rare cases of mieloblastic leukemias that are cured without the transplant. I think this is a blessing from heaven, don't you?

In the face of so many miracles, of being spoiled by God, how can we not live in perpetual thanksgiving?

How can we not praise God for the avalanche of prayers friends and anonymous have bestowed upon us?

How can we not receive with profound gratitude the help that God sends Marta and us?

We never thought life to be mostly or only good things. If we are grateful for these, how can we not be grateful for the others?

If we have asked God to eventually welcome us in His divine arms, how can we suppose that our journey can be trod apart from what is intrinsically human and which includes pain and suffering?

If we know that God loves Marta and each one with a love that is unique and unmeasurable, that He has a project for each one that is perfect, how can we not trust totally, without a shadow of fear?

If we know we have committed ourselves to the merciful Providence of God, how can we not live in absolute peace?

If we know that faith is a free gift, how can we not accept it with true humility?

Happiness is not the absence of pain. Death is the door to real life.

God created us to be happy: where are we loosing our time?

In fact, the only thing to fear is the misuse of our freedom for that is what really makes us unhappy.

All that matters is the absolute certainty of God's overwhelming care and tenderness for each one of us. To be happy is to be absolutely sure of God's love for me. It is to sing, like Our Lady, my 'Magnificat'.

How am I doing? Great!