Queridos todos
O meu novo cateter tem dado que fazer: dois dos pontos infectaram e foram retirados na segunda-feira dia 25. Mas os valores já estavam a zero há alguns dias e por isso veio a febre e o internamento no IPO para isolar e fazer antibióticos. Assim temos estado. Sábado dia 1, acordei muito chorosa a queixar-me do cateter e teve que se tirar mais um ponto: agora já só tem um ponto a segurá-lo com apoio de adesivos. Os valores continuam muito baixos, fazem-se análises todos os dias e as transfusões a condizer... O meu cabelo que estava a crescer depois de ter caído com o primeiro tratamento, está outra vez a cair. Já me habituei a gostar de mim "carequinha" como me chamam cheios de ternura os manos.
Uma das médicas do IPO deu a ler à minha mãe uma peça de teatro que está agora em cena em Lisboa no Teatro Dona Maria. Chama-se 'Oscar e a Senhora Cor de Rosa' de Eric-Emmanuel Schmitt, traduzida pela Ivone Moura e pela Lídia Franco, a actriz que protagoniza a peça. A minha Mãe que não é de ficar com as coisas só para si, leu-me a história aqui no IPO e rimo-nos muito as duas. É a história do menino Oscar que tem oito ou dez anos (não me lembro ao certo mas sei que é muito mais velho que eu) e que está internado num hospital com uma leucémia em fase terminal.
Os pais dele não conseguem lidar com a iminência da morte do filho, só o vão ver uma vez por semana e são incapazes de lhe mostrar os seus sentimentos ou de lhe dar qualquer espécie de carinho. O Oscar, coitado, não acredita em Deus porque os pais também não. Acreditavam no Pai Natal mas um dia o Oscar deu-lhes a notícia de que o Pai Natal não existe... E é uma das voluntárias, parecida com as do IPO e as da Acreditar que nos entretêm e falam connosco aqui no hospital, uma senhora cor de rosa, que encoraja o Oscar a escrever cartas a Deus para se entender com Ele - porque ela acredita que Deus existe - e para explicar o seu 'desagrado' com a sua situação. A peça é curta, a minha Mãe leu-ma rápido, (também aqui só estamos as duas e nem tenho os meus irmãos para ter de lhes fazer gracinhas) e a médica do IPO ainda veio dizer que a peça «é a cara da minha Mãe».
De facto, a minha Mãe gostou tanto de a ler como eu de a ir ouvindo! Não é lamechas, tem imenso sentido do humor, é duma grande intensidade humana. Dois polos fazem girar toda a história: a gestão da morte e o testemunho de quem acredita em Deus.
Para a Vóvó Rosa, como lhe chama o Oscar, Deus é de tal maneira uma verdade vivida que é com toda a naturalidade que Ele faz parte do seu dia a dia. E por isso também do seu voluntariado junto dos doentes. Acho tão gira aquela lógica de 'se Deus existe não perdes nada em Lhe contar o que sentes...' O seu testemunho é feito de presença carinhosa e verdadeira. Não impõe - a felicidade não se impõe - mas não tem complexos nem falsos 'respeitos humanos'. É autêntica, diz a verdade, especialmente a verdade sobre a morte que se aproxima.
Fazer a experiência de Deus e do Seu Amor avassalador é tarefa pessoal, cada um de nós tem que a fazer por si. Mas como não estamos sózinhos no mundo, faz toda a diferença o testemunho de alguém que grite, pela sua alegria e serenidade, ter a certeza de ser amado por Deus. Lembram-se daquela expressão que Isaías põe na boca de Deus: ainda que uma mãe esquecesse o seu filho, Eu não te poderia esquecer, vê que te gravei na palma da minha mão... (Is 49, 15-16.) Wow! Somos seres comunitários, à imagem do nosso Deus que sendo um é trindade de amor. Por isso precisamos dos outros para sermos felizes. Precisamos que o outro nos mostre a face humana do nosso Deus. Precisamos duma senhora cor de rosa, quem quer que seja, que nos faça olhar para Deus com outros olhos, olhos de apaixonado.
Quando se tem a certeza do amor de Deus, um Deus que quando decide dar-se a conhecer, faz-se um de nós, partilha a nossa condição humana e dá conteúdo divino à nossa existência,... quando se tem a certeza do amor deste Deus, então a morte é a porta de entrada na verdadeira vida. Quem não consegue lidar com a morte fica sempre refém dela. E a vida é um contínuo fugir com o rabo à seringa, se é que me entendem... Só vive em paz quem sabe que do lado de lá da morte tem o seu Deus de amor e misericórdia pronto a acolher quem gravou na palma da Sua mão. E sabendo isso, quem não procurará viver bem, viver em resposta a esse amor?
À medida que vai escrevendo a Deus, o Oscar vai baixando as defesas. Vai descobrindo que, como Jesus na cruz, é possível sofrer sem dor, que um amanhecer revela a incansável persistência do amor de Deus por si e experimenta finalmente a paz, a alegria e a felicidade. É ele Oscar que acaba por falar aos pais na morte, na sua e na deles, e reconciliado com a vida morre completo.
Gostei muito de ouvir a minha Mãe ler-me a história. Eu por mim, tenho a sorte de me terem falado de Deus desde antes de eu nascer, por isso é tudo bem mais simples. E depois, tenho tanta gente que gosta de mim e fala de mim a Jesus que estou muito bem acompanhada. A todos agradeço e podem ter a certeza de que, quando as coisas me custam mais, penso em todos os que não têm o que eu tenho e isso ajuda-me muito.
Para a semana, espero já vos escrever de casa. Beijinhos a todos
Marta
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Dear everyone
My new catheter has been troublesome: two of the stitches infected and had to be taken out on Monday the 25th. But my data had been at zero for a few days, so fever came along and so did checking in at the hospital for isolation and antibiotics… Such has been our week. On Saturday the 1st, I woke up complaining about the catheter and another stitch was taken out: there is now only one holding the catheter with the help of some adhesives. Data continue to be very low, blood tests are done daily and transfusions accordingly… My hair which had been growing since it first fell during the initial treatment is now falling again. I have grown fond of my nickname ‘baldie’ that my siblings so caringly call me.
One of the doctors at the hospital gave my Mom a play to read. It is now showing in Lisbon. It is called ‘Oscar and the Lady in Pink’ (‘Oscar et la dame rose’ in the original French) written by Eric-Emmanuel Schmitt. My Mother, who is not the type to keep good things for herself, read the play to me and we had some good laughs. It is the story of a boy, eight or ten, (I am not sure, but he is much older than I) who is in the hospital with terminal leukemia.
His parents, who cannot cope with the impending approach of their son’s death, only visit him once a week, incapable of sharing their feelings or showing him any kind of tenderness. Oscar, poor thing, does not believe in God because his parents don’t either. They used to believe in Santa Claus but one day Oscar broke the news that Santa does not exist... So it is one of the volunteers, like those here at the hospital who keep us company, a lady in pink, who encourages Oscar to write to God – for she does believe He exists. She tells Oscar it would be a good way of settling it out with God and voice his ‘discontent’ with the whole affair. The play is short, my Mother read it quickly (you know, here at the hospital it is only the two of us and we don’t have my siblings to take care of), and according to the doctor, it has my mother written all over it.
In fact, my Mother loved the play as much as I loved listening to it. It does not whine, it has great sense of humor, profound human density. Two elements structure the entire story: the question of death and the witness of a believer.
For Granny Rose, as Oscar calls her, God is such a lived truth that He is naturally part of her daily life. And so too of the way she understands what it is to be a volunteer with the sick. I like her logic ‘if God exists, you’re better off telling him your feelings’... Her witness is made of a caring and authentic presence. She imposes nothing – happiness cannot be imposed – but she does not go around with false ‘respects’ or qualms. She is truthful, particularly telling the truth about the approaching death.
To experience God and His overwhelming love is a personal endeavor, each one of us has to do it for himself. But since we are not alone in the world, it makes all the difference to be able to witness someone else scream, with joy and serenity, the certainty of being loved by God. Remember the expression Isaiah attributes to God: even if a mother could forget her own child, I could not forget you; see, I have carved you on the palm of my hand (Is 49: 15-16). Wow! We are communal beings made in the image of our God who, being one, is a trinity of love. So we need others, in order to be happy. We need others to show us the human face of our God. We need a lady in pink, or whoever, to lead us by the hand and teach us to look at God with different eyes, the eyes of someone in love.
When one knows that God who, deciding to make Himself known, chose to become one of us, sharing our human condition, giving divine meaning to our existence, when one is certain of this God’s love..., then death is the door to real life. Anyone who cannot deal with death will forever be its hostage. Life will be a constant running away from the syringe, if you know what I mean. Peace will be enjoyed only by those who know that, on the other side of death, there is a loving and merciful God waiting to welcome the one He has carved on the palm of His hand. Knowing this, who will not try to live well, to live in response to such love?
As he writes to God, Oscar lets go of his defenses. He discovers that, like Jesus on the cross it is possible to suffer without pain, that a dawn reveals the untiring persistence of God’s love for him and finally experiences peace, joy and happiness. It is he, Oscar who ends up talking to his parents about his and their death, and reconciled with life, dies complete.
I very much enjoyed to have my Mother read this story to me. I for one, am lucky that I have been told about God since before I was born, so everything is so much simpler. And on top of that, I have so many people who like me talk to Jesus about me, that I feel in great company. Each one I thank, and you may be sure that when things get tough, the thought of those who do not have it like I do, helps me very much.
Next week, I hope to write to you from home. Love to everyone
Marta
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